quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Dor-de-ideia

Dor-de-ideia
Você está com dor de dente. O dentista examina o dente e lhe diz que não tem jeito. A solução é arrancar o dente. Anestesia e botido, o dente é arrancado. A dor desaparece. Você deixa de sofrer. Esse é um paradigma de como são resolvidos os problemas que têm a ver com coisas concretas: a lâmpada que queimou, o ralo que entupiu, a unha que encravou, o motor que fundiu, a perna que quebrou: são as dores-de-coisas. Dores-de-coisas se resolvem tecnicamente,cientificamente.A coisa fica diferente quando a dor que você tem éuma dor-de-ideia. Dor-de-ideia dói muito. São dores-de-ideia a ideia de perder o emprego, a ideia de ser feio, a ideia de ser burro, a ideia de que o filho vai morrer num desastre, a ideia de que Deus vai mandá-Io para o inferno, a ideia de que quem você ama vai traí-Io.Dores-de-ideia são terríveis: causam ansiedade, pânico,insônia, diarréia.Virou moda falar em realidade virtual, como coisa inventada por computadores e eletrônica. Mas ela é velhíssima. Apareceu com o primeiro pensamento.Ideias são realidades virtuais. Realidade virtual é umacoisa que parece ser mas não é. Se parece ser mas não é deve ser inofensiva. Errado. As realidades virtuais produzem dor-de-ideia.Quando a gente tem uma ideia, sabe que é só ideia, sem substância física, e a despeito disso ela noscausa dor-de-ideia, dizemos que é neurose. O neurótico sabe que o dragão que corre atrás dele é de mentirinha,não existe. Não obstante, essa mentirinha faz a adrenalina esguichar no sangue e o coração dispara.Liguei a TV. Filme de ficção científica. Eu sabia que tudo era mentira. Aquelas coisas não existiam como realidade. Tinham sido produzidas num estúdio, diante de uma câmera. Mas eu comecei a sofrer de dor-de-ideia. Uma terrível ansiedade: “Meu Deus, o escorpião negro vai picar a moça!” “Burro! Burro!”, eu me dizia,num esforço de gozar o filme. “É tudo mentira! Ria! Relaxe!” Inutilmente. Nós, os humanos, temos essa horrível e maravilhosa capacidade de sofrer pelo que não existe. Somos neuróticos.Quando uma pessoa se sente perseguida pelo mesmo dragão que perseguiu o neurótico, adrenalina no sangue e coração disparado, mas além disso fica toda chamuscada pelo fogo que sai da boca do dragão,dizemos que ela é psicótica. O psicótico não separa o virtual do real. Para ele a ideia é coisa. Pensou, é real. Porque as dores-de-ideia são tão ou mais dolorosas que as dores-de-coisas, os homens têm estado, desde sempre, procurando técnicas para acabar com elas.As terapias para cura de dor-de-ideia podem se classificar em dois grupos distintos. No primeiro grupo estão as terapias baseadas na crença de que dor-de-ideia se cura com uma coisa que não é ideia. Chá de hortelã, refresco de maracujá, as variadas misturas preparadas pelo barman, um cigarrinho, maconha, pó. O outro grupo acredita diferente: ideia se cura com ideia. Os remédios da psiquiatria são potentes. Eu mesmo já me vali deles, com excelentes resultados. O problema são os efeitos colaterais. É possível que,passado o efeito da droga, voltem as dores-de-ideia. Por vezes, para tirar a dor-de-ideia, a pessoa fica abobalhada. E se o resultado for maravilhoso, e a pessoa ficar totalmente feliz, ela ficará também totalmente idiota. As pessoas totalmente felizes não conseguem pensar pensamentos interessantes. É preciso ter um pouquinho de dor para que o pensamento pense bonito.O meu vôo estava sendo tranqüilo. Aí, o telefone tocou. Uma voz: “Má notÍcia para lhe dar. Das Edições Loyola. O padre Galache morreu.” Uma imensa dor-de-ideia. Sim, porque ao meu redor tudo continua o mesmo. É uma ideia que me dói – dor-de-ideia que não é para ser curada. É para ser sofrida. Saber sofrer é parte da sabedoria de viver. O padre Galache era meu amigo. Editor dos meus livros. Plantarei uma árvore para ele.
Terapias para cura de dor-de-ideia. Rezas: a repetição sonambúlica do terço tem o efeito terapêutico de entupir o pensador com palavras sem sentido. Quem reza sonambulamente não pensa: se não pensa asdores-de-ideia não aparecem. Meditação transcendental. Cantar. Quem canta seus males espanta. Ah! Os maravilhosos efeitos terapêuticos dos”Corais de Bach” (note bem: “corais” e não “florais”) que ouço para colocar em ordem a alma. Conversa tranqüila. Confissão. Magia. Psicanálise, essa “conversa curante”: só se pode chegar às ideias por meio de ideias. Filosofia. Nem toda. Há uma filosofia que me torna pesado. Afundo. É a filosofia acadêmica que se faz profissionalmente. Todos os que estão escrevendo teses de filosofia sofrem de dores-de-ideia. A filosofia acadêmica pode emburrecer. Se houver ocasião,falaremos sobre o assunto. Mas há uma filosofia alegre,que me faz levitar. Quer levitar? Filosofe. Para fazer levitar a filosofia não pode nascer da cabeça. Ela tem denascer das entranhas. Tem de ser escrita com o sangue. A gente lê e o corpo estremece: ri, espanta-se, tranqüiliza-se, assombra-se. Muita filosofia, que no seu nascimento era coisa viva, sangrante, suco do pensador, nos cursos de filosofia se torna “disciplina”,grão duro, sem gosto, a ser moído. O aluno é obrigado a estudar para passar nos exames. Filosofia terapêutica há de ser feita com prazer. Kolakowski, filósofo polonês,compara o filósofo a um bufão, bobo da corte, cujo ofício é fazer rir. O filosofar amansa as palavras: aquela cachorrada feroz que latia, ameaçava e não deixava dormir se transforma em cachorrada amiga de caudas abanantes. O filosofar ensina a surfar: de repente, agente se vê deslizando sobre as ondas terríveis das dores-de-ideia. Também serve para pôr luz no escuro.Quando a luz se acende o medo se vai. Muita dor-de-ideia se deve à falta de luz. Os demônios fogem da luz.Wittgenstein diz que filosofia é contra-feitiço. É boa para nos livrar das dores-de-ideia, produtos de feitiçaria: há tantos feiticeiros e feiticeiras soltos por aí, tão bonitos: ésó acreditar para ficar enfeitiçado … A filosofia nos torna desconfiados. Quem desconfia não fica enfeitiçado.Palavra de mineiro. Pois fica, assim, um convite para brincar de filosofar.
Rubem Alves