Cultura como Construção Humana: Entre Conexões, Vínculos
e Distanciamentos
Prof. Esp. José Igídio dos Santos
Introdução
A cultura é um dos aspectos mais complexos e fundamentais da
existência humana. Ela não apenas define os modos de vida de um povo, mas
também estrutura as formas como nos relacionamos conosco, com o ambiente e com
outros grupos. Trata-se de um processo de construção contínuo, que articula
valores, crenças, saberes e práticas, sendo constituído por princípios
normativos que orientam a vida em sociedade.
Segundo Clifford Geertz (1989), “o homem é um animal
amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, e eu tomo a cultura como
sendo essas teias, e sua análise, portanto, não é uma busca por leis, mas uma
busca por significados” (p. 15). Essa definição amplia nossa percepção da
cultura como construção simbólica, que nos conecta a um grupo e, ao mesmo
tempo, nos diferencia de outros.
A Perspectiva da Antropologia Cultural
A Antropologia Cultural oferece uma lente privilegiada para
compreender a cultura em sua complexidade e desenvolvimento. A partir dessa
perspectiva, a cultura não é vista como algo estático ou homogêneo, mas como um
processo dinâmico, continuamente recriado pelos sujeitos sociais. O
desenvolvimento cultural está diretamente vinculado às interações entre
diferentes grupos, à adaptação às condições históricas e ambientais, e à
transformação dos valores ao longo do tempo.
Bronislaw Malinowski, um dos fundadores da Antropologia
moderna, já destacava a importância de compreender a cultura a partir do ponto
de vista dos próprios sujeitos. Para ele, “cada cultura é um todo coerente,
em que todas as partes se inter-relacionam, com o propósito de satisfazer as
necessidades humanas”. Essa abordagem funcionalista ainda nos permite
perceber como as práticas culturais evoluem em resposta às demandas sociais.
Além disso, a Antropologia Cultural reconhece o papel do
poder, da dominação e da resistência no desenvolvimento cultural, especialmente
quando grupos são submetidos a processos de colonização, globalização ou
aculturação. A cultura, nesse sentido, é campo de disputa e de criação, o que
reforça sua natureza plural e em constante transformação.
Enculturação, Aculturação e Inculturação na Perspectiva
de Leonardo Boff
Leonardo Boff (2003) propõe uma distinção conceitual
importante entre três processos culturais fundamentais:
- Enculturação:
é o processo pelo qual o indivíduo, desde a infância, é inserido em sua
própria cultura, absorvendo seus valores, símbolos, práticas e modos de
ser. Trata-se de uma internalização natural, onde o sujeito se reconhece
pertencente a determinado grupo cultural.
Exemplo: uma criança indígena que aprende, desde
cedo, os cantos tradicionais de sua tribo, participa de rituais comunitários e
se familiariza com o ambiente da floresta através da vivência cotidiana.
- Aculturação:
ocorre quando uma cultura é submetida à influência ou imposição de outra,
muitas vezes de forma desigual, provocando mudanças, substituições ou
perdas culturais. É comum em contextos coloniais ou de dominação global,
em que a cultura hegemônica silencia ou inferioriza a cultura local.
Exemplo: durante a colonização do Brasil, os povos
indígenas foram obrigados a abandonar suas línguas, crenças e modos de vida
para adotar os costumes europeus e a religião cristã. Esse processo resultou em
perdas irreparáveis de saberes tradicionais.
- Inculturação:
diferente da aculturação, este processo se refere à abertura de uma
cultura para receber elementos externos sem perder sua identidade. É uma
forma respeitosa de integração, baseada no diálogo e na valorização mútua.
Boff utiliza esse conceito especialmente em contextos religiosos e éticos,
onde a mensagem precisa se enraizar nas culturas locais sem
descaracterizá-las.
Exemplo: no ambiente escolar, a introdução de
práticas pedagógicas ocidentais pode ocorrer de forma respeitosa e dialógica em
uma comunidade quilombola, valorizando o conhecimento tradicional, a oralidade
e os modos próprios de aprendizagem dos estudantes.
Esses três movimentos mostram que a cultura é fluida,
relacional e profundamente marcada por interações históricas, políticas e
simbólicas. Entender essas nuances é essencial para que possamos promover
relações mais justas e respeitosas entre os povos — especialmente em contextos
educacionais, onde a diversidade cultural deve ser reconhecida, respeitada e
integrada de forma significativa ao currículo.
A Cultura em Todos os Acontecimentos da Vida
Todos os acontecimentos da vida têm um componente cultural.
O modo como nos alimentamos, como cumprimentamos as pessoas, como cuidamos do
ambiente ou valorizamos o conhecimento são práticas culturais que revelam os
significados construídos historicamente em cada sociedade. O simples fato de
escolher alimentos, prepará-los e compartilhá-los diz muito sobre nossos
valores sociais, familiares e até espirituais.
Por exemplo, enquanto em algumas culturas comer com as mãos
é comum e simbólico, em outras o uso de talheres é considerado um sinal de
civilidade. Nenhum desses modos é superior ao outro: são expressões culturais
legítimas.
Nesse sentido, como bem aponta Roque de Barros Laraia
(2001), “o comportamento de um indivíduo não é resultado direto de sua
herança biológica, mas sim da cultura da sociedade em que ele foi socializado”
(p. 25). Assim, o que muitas vezes consideramos como natural, é, na verdade,
uma construção cultural profundamente enraizada.
Cultura, Aculturação e Negação
Quando um povo é submetido à cultura de outro, ocorre o que
chamamos de aculturação — um processo de transformação, muitas vezes
forçado, que modifica as expressões culturais originais. Um exemplo marcante
disso é a chegada dos portugueses ao Brasil, quando as culturas indígenas foram
sistematicamente negadas, invisibilizadas ou colocadas em segundo plano diante
do projeto colonizador europeu.
Essa negação cultural pode gerar apagamento de saberes,
línguas e tradições, dificultando o reconhecimento da diversidade e da riqueza
de práticas locais. Como destaca Stuart Hall (2003), “as identidades não são
mais vistas como unificadas nem como estáveis. Elas estão sendo cada vez mais
definidas por aquilo que excluem, e não por aquilo que são” (p. 13).
Portanto, os vínculos e os distanciamentos entre os povos
não são apenas geográficos, mas simbólicos, sendo moldados por disputas de
valores, crenças e narrativas históricas.
O Que É Natural e O Que É Cultural?
A cultura cresce sobre o natural, como um galho cresce a partir de uma raiz.
Aspecto Natural (Raiz) |
Expressão Cultural (Ramo) |
Alimentação: necessidade biológica |
Escolha dos alimentos, modos de preparo, rituais à mesa |
Comunicação verbal: capacidade inata |
Línguas faladas, gestos, narrativas, formas de expressão
oral |
Crescimento: processo biológico |
Ritmos de vida, idade escolar, ritos de passagem |
Sono: necessidade fisiológica |
Rotinas sociais de descanso, regras sobre horários e
produtividade |
Reprodução: função biológica |
Valores familiares, modelos de criação, papéis de gênero |
Sentir dor ou prazer: resposta neural |
Maneiras de demonstrar emoções, autocontrole, normas
sociais |
Movimento: capacidade de locomoção |
Danças, esportes, modos de caminhar e interagir no espaço |
Curiosidade: impulso natural |
Educação formal, ciência, busca por conhecimento |
Cultura no Cotidiano: A Presença Que Não Vemos
Práticas cotidianas revelam o quanto somos possuidores de
cultura. Desde a forma como nos organizamos socialmente até os modos como
tratamos os outros e o planeta, há traços culturais que refletem os princípios
normativos da sociedade à qual pertencemos.
A valorização dos estudos, por exemplo, não é uma prática
"natural", mas sim cultural: ela reflete o lugar que a educação ocupa
como valor em determinada sociedade. O mesmo vale para os modos de consumo, os
padrões de beleza, as formas de expressão artística e até o uso do tempo livre.
As culturas, portanto, não são estáticas nem puras. Segundo
Néstor García Canclini (2008), “a modernidade não se constrói eliminando
tradições, mas rearticulando-as em novos cenários e através de novas
linguagens” (p. 47). Isso mostra que a cultura está em permanente
reconstrução, mesmo quando marcada pela tensão entre o tradicional e o
contemporâneo.
Conclusão
Compreender a cultura como construção humana nos permite
reconhecer tanto a diversidade quanto a possibilidade de diálogo entre os
povos. É por meio da cultura que nos tornamos humanos, e é respeitando as
culturas dos outros que nos tornamos verdadeiramente civilizados.
Em tempos de intolerância e exclusão, reafirmar o valor da
cultura — em suas múltiplas expressões — é um ato político, pedagógico e ético.
Como educadores, precisamos promover espaços de escuta, valorização e
reconstrução de saberes culturais, fortalecendo os vínculos entre sujeitos e
promovendo a convivência baseada no respeito e na alteridade.
Referências
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão
pela terra. Petrópolis: Vozes, 2003.
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias
para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2008.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio
de Janeiro: LTC, 1989.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.
Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito
antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
MALINOWSKI, Bronislaw. Uma teoria científica da cultura.
São Paulo: Vozes, 1975
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