quarta-feira, 9 de abril de 2025

Cultura como Construção Humana: Entre Conexões, Vínculos e Distanciamentos

 

Cultura como Construção Humana: Entre Conexões, Vínculos e Distanciamentos
Prof. Esp. José Igídio dos Santos

Introdução

        A cultura é um dos aspectos mais complexos e fundamentais da existência humana. Ela não apenas define os modos de vida de um povo, mas também estrutura as formas como nos relacionamos conosco, com o ambiente e com outros grupos. Trata-se de um processo de construção contínuo, que articula valores, crenças, saberes e práticas, sendo constituído por princípios normativos que orientam a vida em sociedade.

    Segundo Clifford Geertz (1989), “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, e eu tomo a cultura como sendo essas teias, e sua análise, portanto, não é uma busca por leis, mas uma busca por significados” (p. 15). Essa definição amplia nossa percepção da cultura como construção simbólica, que nos conecta a um grupo e, ao mesmo tempo, nos diferencia de outros.

A Perspectiva da Antropologia Cultural

    A Antropologia Cultural oferece uma lente privilegiada para compreender a cultura em sua complexidade e desenvolvimento. A partir dessa perspectiva, a cultura não é vista como algo estático ou homogêneo, mas como um processo dinâmico, continuamente recriado pelos sujeitos sociais. O desenvolvimento cultural está diretamente vinculado às interações entre diferentes grupos, à adaptação às condições históricas e ambientais, e à transformação dos valores ao longo do tempo.

    Bronislaw Malinowski, um dos fundadores da Antropologia moderna, já destacava a importância de compreender a cultura a partir do ponto de vista dos próprios sujeitos. Para ele, “cada cultura é um todo coerente, em que todas as partes se inter-relacionam, com o propósito de satisfazer as necessidades humanas”. Essa abordagem funcionalista ainda nos permite perceber como as práticas culturais evoluem em resposta às demandas sociais.

    Além disso, a Antropologia Cultural reconhece o papel do poder, da dominação e da resistência no desenvolvimento cultural, especialmente quando grupos são submetidos a processos de colonização, globalização ou aculturação. A cultura, nesse sentido, é campo de disputa e de criação, o que reforça sua natureza plural e em constante transformação.

Enculturação, Aculturação e Inculturação na Perspectiva de Leonardo Boff

    Leonardo Boff (2003) propõe uma distinção conceitual importante entre três processos culturais fundamentais:

  • Enculturação: é o processo pelo qual o indivíduo, desde a infância, é inserido em sua própria cultura, absorvendo seus valores, símbolos, práticas e modos de ser. Trata-se de uma internalização natural, onde o sujeito se reconhece pertencente a determinado grupo cultural.

Exemplo: uma criança indígena que aprende, desde cedo, os cantos tradicionais de sua tribo, participa de rituais comunitários e se familiariza com o ambiente da floresta através da vivência cotidiana.

  • Aculturação: ocorre quando uma cultura é submetida à influência ou imposição de outra, muitas vezes de forma desigual, provocando mudanças, substituições ou perdas culturais. É comum em contextos coloniais ou de dominação global, em que a cultura hegemônica silencia ou inferioriza a cultura local.

    Exemplo: durante a colonização do Brasil, os povos indígenas foram obrigados a abandonar suas línguas, crenças e modos de vida para adotar os costumes europeus e a religião cristã. Esse processo resultou em perdas irreparáveis de saberes tradicionais.

  • Inculturação: diferente da aculturação, este processo se refere à abertura de uma cultura para receber elementos externos sem perder sua identidade. É uma forma respeitosa de integração, baseada no diálogo e na valorização mútua. Boff utiliza esse conceito especialmente em contextos religiosos e éticos, onde a mensagem precisa se enraizar nas culturas locais sem descaracterizá-las.

    Exemplo: no ambiente escolar, a introdução de práticas pedagógicas ocidentais pode ocorrer de forma respeitosa e dialógica em uma comunidade quilombola, valorizando o conhecimento tradicional, a oralidade e os modos próprios de aprendizagem dos estudantes.

        Esses três movimentos mostram que a cultura é fluida, relacional e profundamente marcada por interações históricas, políticas e simbólicas. Entender essas nuances é essencial para que possamos promover relações mais justas e respeitosas entre os povos — especialmente em contextos educacionais, onde a diversidade cultural deve ser reconhecida, respeitada e integrada de forma significativa ao currículo.

A Cultura em Todos os Acontecimentos da Vida

    Todos os acontecimentos da vida têm um componente cultural. O modo como nos alimentamos, como cumprimentamos as pessoas, como cuidamos do ambiente ou valorizamos o conhecimento são práticas culturais que revelam os significados construídos historicamente em cada sociedade. O simples fato de escolher alimentos, prepará-los e compartilhá-los diz muito sobre nossos valores sociais, familiares e até espirituais.

    Por exemplo, enquanto em algumas culturas comer com as mãos é comum e simbólico, em outras o uso de talheres é considerado um sinal de civilidade. Nenhum desses modos é superior ao outro: são expressões culturais legítimas.

    Nesse sentido, como bem aponta Roque de Barros Laraia (2001), “o comportamento de um indivíduo não é resultado direto de sua herança biológica, mas sim da cultura da sociedade em que ele foi socializado” (p. 25). Assim, o que muitas vezes consideramos como natural, é, na verdade, uma construção cultural profundamente enraizada.

Cultura, Aculturação e Negação

    Quando um povo é submetido à cultura de outro, ocorre o que chamamos de aculturação — um processo de transformação, muitas vezes forçado, que modifica as expressões culturais originais. Um exemplo marcante disso é a chegada dos portugueses ao Brasil, quando as culturas indígenas foram sistematicamente negadas, invisibilizadas ou colocadas em segundo plano diante do projeto colonizador europeu.

    Essa negação cultural pode gerar apagamento de saberes, línguas e tradições, dificultando o reconhecimento da diversidade e da riqueza de práticas locais. Como destaca Stuart Hall (2003), “as identidades não são mais vistas como unificadas nem como estáveis. Elas estão sendo cada vez mais definidas por aquilo que excluem, e não por aquilo que são” (p. 13).

    Portanto, os vínculos e os distanciamentos entre os povos não são apenas geográficos, mas simbólicos, sendo moldados por disputas de valores, crenças e narrativas históricas.

O Que É Natural e O Que É Cultural?

A cultura cresce sobre o natural, como um galho cresce a partir de uma raiz.

Aspecto Natural (Raiz)

Expressão Cultural (Ramo)

Alimentação: necessidade biológica

Escolha dos alimentos, modos de preparo, rituais à mesa

Comunicação verbal: capacidade inata

Línguas faladas, gestos, narrativas, formas de expressão oral

Crescimento: processo biológico

Ritmos de vida, idade escolar, ritos de passagem

Sono: necessidade fisiológica

Rotinas sociais de descanso, regras sobre horários e produtividade

Reprodução: função biológica

Valores familiares, modelos de criação, papéis de gênero

Sentir dor ou prazer: resposta neural

Maneiras de demonstrar emoções, autocontrole, normas sociais

Movimento: capacidade de locomoção

Danças, esportes, modos de caminhar e interagir no espaço

Curiosidade: impulso natural

Educação formal, ciência, busca por conhecimento


Cultura no Cotidiano: A Presença Que Não Vemos

    Práticas cotidianas revelam o quanto somos possuidores de cultura. Desde a forma como nos organizamos socialmente até os modos como tratamos os outros e o planeta, há traços culturais que refletem os princípios normativos da sociedade à qual pertencemos.

    A valorização dos estudos, por exemplo, não é uma prática "natural", mas sim cultural: ela reflete o lugar que a educação ocupa como valor em determinada sociedade. O mesmo vale para os modos de consumo, os padrões de beleza, as formas de expressão artística e até o uso do tempo livre.

    As culturas, portanto, não são estáticas nem puras. Segundo Néstor García Canclini (2008), “a modernidade não se constrói eliminando tradições, mas rearticulando-as em novos cenários e através de novas linguagens” (p. 47). Isso mostra que a cultura está em permanente reconstrução, mesmo quando marcada pela tensão entre o tradicional e o contemporâneo.

Conclusão

    Compreender a cultura como construção humana nos permite reconhecer tanto a diversidade quanto a possibilidade de diálogo entre os povos. É por meio da cultura que nos tornamos humanos, e é respeitando as culturas dos outros que nos tornamos verdadeiramente civilizados.

    Em tempos de intolerância e exclusão, reafirmar o valor da cultura — em suas múltiplas expressões — é um ato político, pedagógico e ético. Como educadores, precisamos promover espaços de escuta, valorização e reconstrução de saberes culturais, fortalecendo os vínculos entre sujeitos e promovendo a convivência baseada no respeito e na alteridade.

Referências

BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 2003.

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2008.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

MALINOWSKI, Bronislaw. Uma teoria científica da cultura. São Paulo: Vozes, 1975

 

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