FILÓSOFO E SEU CACHORRO
Luis Fernando Veríssimo
A propósito da crônica “FILÓSOFO E SEU CACHORRO”, de Luis Fernando Veríssimo. Diz um ditado popular “Um cachorro é o melhor amigo do homem”, acrescento “na vida e na morte”.
O filósofo costumava falar com seu cachorro. Os
dois estavam chegando ao fim da vida ao mesmo tempo, e a idade os aproximara
ainda mais. O filósofo não podia mais ler ou escrever, e falar com o cachorro
era a única maneira de desfiar seus pensamentos, pois sua mente continuava
ativa. A família do filósofo não tinha muita paciência para ouvir suas
divagações, enquanto o velho cachorro não tinha mais nada a fazer senão ficar
deitado aos pés do seu dono enquanto ele falava, falava, falava. O filósofo
sabia que o cachorro provavelmente dormia ao som da sua voz, mas não se
importava. Pelo menos sua voz tinha um destino, dois ouvidos leais, em vez de
se perder no espaço vazio da biblioteca.
Mas um
dia aconteceu o seguinte: o cachorro respondeu.
O
filósofo tinha dito:
-
Pensando bem, a morte é uma dádiva.
E o
cachorro:
-
Desenvolve.
O
filósofo olhou em volta. Quem dissera aquilo? Perguntou para o espaço vazio:
- O quê?
- “A
morte é uma dádiva”. Desenvolve a tese.
Não havia
dúvida, que estava falando era o cachorro. O filósofo hesitou, limpou a
garganta, depois disse:
- Bem,
não é exatamente uma tese. É mais um consolo.
- Como
assim?
O
cachorro falava sem abrir os olhos.
- Você já
pensou – disse o filósofo – se nós vivêssemos para sempre? Estaríamos obrigados
a entender o Universo. As razões da existência, o sentido da vida, essas
coisas. Como são coisas incompreensíveis, viveríamos com a permanente
consciência da nossa incapacidade, da nossa insuficiência mental. Do nosso
fracasso. Seria uma angústia eterna.
- E a
morte é melhor do que isso?
- A morte
nos exime. Somos visitantes no Universo. Suas grandes questões não nos dizem
respeito, pois estamos aqui só de passagem. A finitude é a nossa desculpa para
não entender, para não precisar entender. A dádiva da morte é nos tornar iguais
a vocês.
- Nós
quem?
- Os
bichos. Vocês têm cosmogonias? Especulações metafísicas? Algum tipo de
inquietação existencial?
- Eu,
não. Não posso falar pelos outros. Mas vem cá...
- O quê?
- Não é
justamente o fato de vocês serem mortais, finitos e passageiros que dá origem a
todas as cosmogonias, a toda metafísica? A morte não é a mãe da filosofia?
- A
recusa da morte é a mãe da filosofia. A ideia de deixar de existir é
profundamente repugnante para nosso amor-próprio. Aceitando a morte como um
consolo, como um álibi, eu também estou me livrando desta absurda pretensão do
meu ego, que é a de que eu não posso simplesmente acabar. Logo eu, de quem eu
gosto tanto. Por isso se inventam religiões, e mil e uma maneiras de a vida
continuar, nem que se volte como um cachorro.
- Epa.
- Foi só
um exemplo. Mas eu renuncio à filosofia, renuncio a toda especulação sobre o
mistério de ser e aceito meu fim. Estou pronto para pensar no Universo e na
morte como um bicho.
- Mas eu
nunca penso no universo e na morte.
-
Exatamente. Porque você não sabe que vai morrer.
- Fiquei
sabendo agora. Obrigado, viu?
- É isso
que eu quero. Essa sábia ignorância, essa burrice caridosa... Podemos até
trocar de lugar, se você concordar. Lhe dou todas as minhas especulações,
minhas teses, meu ego e minha angústia, em troca da sua paz.
- Acho
que sua família não aprovaria. E não sei se eu ficaria bem de cardigã.
Nisso, a
neta do filósofo entrou na biblioteca e tentou acordá-lo, sacudindo-o e dizendo
“Vô, vô, o lanche”, mas não conseguiu, e foi correndo chamar a mãe. O cachorro
também continuou com os olhos fechados.
A propósito da crônica “FILÓSOFO E SEU CACHORRO”, de Luis Fernando Veríssimo. Diz um ditado popular “Um cachorro é o melhor amigo do homem”, acrescento “na vida e na morte”.
A
crônica ajuda-nos a pensar a vida e suas vicissitudes e na morte como prospectiva
de uma libertação do corpo e da alma; além de possibilitar a consciência de
nossa finitude e que afinal, é uma exigência de nossa humanidade.
Na verdade
a vida como “dádiva” é uma compreensão humana que a meu ver nos animais é uma forma
de percepção, de modo que vemos uma parceria com cachorro com o seu dono.
Entendido
desta forma, a vida e sua finitude é sentida. Afinal ela sente a si mesma e, para
tanto, é preciso construir redes de relações como espaços de partilha de tal
forma que viver com lucidez mesmo na possível longevidade atual, requererá
sempre mais a boa companhia de nós
mesmos, como uma forma de engajamento subjetivo da vida até a morte.
Perceber
o sentimento de solidão no dia-a-dia de sua vida – a companhia do cachorro como
presença permanente impõe uma “atitude” ética de pensar a rejeição humana que
só é superada pela fidelidade canina que com o seu dono sela o destino
de vida e comunhão (na vida e na morte). A exemplo do filme “sempre ao seu lado
(2009)”.
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